"Quando a morte chega, morre a totalidade da pessoa, seu corpo e sua alma. No entanto, nesse momento, Deus, doador da vida e vencedor da morte, ressuscita ambos em um corpo glorioso e na individualidade de cada ser, sua alma. Com a ressurreição, o tempo deixa de existir, chega o momento da Eternidade em Deus, da imortalidade plena. Isso é ressurreição!", escreve Frei Jacir de Freitas Faria, OFM, ao comentar o Evangelho de Mateus (MT 17,10-13).
Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, professor de exegese bíblica, membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB) e padre Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze, cujo último livro é O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019).
O texto sobre o qual vamos refletir é Mt 17,10-13. Trata-se da pergunta que os discípulos fizeram a Jesus sobre a volta do profeta Elias, logo após o episódio da transfiguração, no monte da Galileia, que Orígenes (253 E.C.) identificou como sendo o Tabor. Ela surge a propósito da crença popular de que Elias voltaria, mediante a visão que acabaram de ter do profeta junto com Jesus. O raciocínio é lógico: se Elias não voltou, Jesus não podia ser o Messias. A resposta afirmativa de Jesus de que ele já voltou, mas que não foi reconhecido, já suscitou muitas interpretações entre os cristãos sobre a reencarnação de Elias em João Batista. Estaria, de fato, Jesus falando da reencarnação de Elias? Qual a diferença entre ressurreição e reencarnação?
Elias, o tesbita da tribo de Galaad, conforme 1Rs 18—19, é um profeta que deixou a corte para viver no meio do povo. Recebeu a missão de Deus de denunciar a idolatria, as injustiças sociais do rei Acab (874 a 853 a.E.C.) e de constituir Jeú como novo rei de Israel. Com isso, ele devolveu a esperança ao povo sofrido e expandiu a fé em Deus como o Libertador da tradição javista do Êxodo [1].
Na tradição judaica, é firme a fé de que o profeta Elias precederá a vinda do Messias (Ml 3,23-24). Por isso, os judeus, ainda hoje, na noite do jantar da ceia pascal judaica, deixam uma cadeira reservada e vazia para Elias. No final da celebração, as portas da casa são abertas, e o pai de família convoca Elias para entrar na sua casa e anunciar a vinda do Messias.
Em Ml 3,23-24 se lê: “Eis que vos enviarei Elias, o profeta, antes que chegue o Dia do Senhor, grande e terrível. Ele fará voltar o coração dos pais para os filhos e o coração dos filhos para os pais, para que eu não venha ferir a terra com anátema”.
Nesse sentido, não soou estranha a dúvida entre o povo de que Jesus seria o Elias que tinha voltado (Mc 8,28). O mesmo aconteceu com os apóstolos prediletos que o acompanhavam no Tabor. Jesus lhes garante que Elias já voltou, mas que não foi reconhecido (Mt 17,11). Qual o significado dessa afirmação? Seria, então, João Batista a encarnação de Elias? O que é a doutrina da reencarnação?
Comecemos pela última pergunta. Essa questão é muito complicada e controversa. Religiões antigas, como o hinduísmo, o budismo, jainismo e correntes tardias do judaísmo aceitam a ideia da reencarnação, isto é, a de que a essência não física de uma pessoa (alma) inicia uma nova vida em um novo corpo, após a sua morte. No budismo, seu fundador, Sidarta Gautama ou Buda como é conhecido, se opôs aos vários ciclos reencarnatórios do hinduísmo. Nas religiões de matriz africana o contato com os antepassados que já faleceram é de fundamental importância, pois eles podem ajudar os vivos [2].
Ainda que haja controvérsia entre os estudiosos, podemos afirmar que o cristianismo conviveu, nos seus primeiros séculos, com a ideia de reencarnação. No império romano do século III, havia adeptos da reencarnação entre os não cristãos. Os gnósticos, por exemplo, admitiam a reencarnação. Já o islamismo seguiu o cristianismo, rejeitando a reencarnação.
Os adeptos da reencarnação sustentam a opinião de que alguns santos padres e bispos foram favoráveis à reencarnação, conceito que teria sido rejeitado somente no II Concílio de Constantinopla (553 E.C), ao negar a preexistência da alma e sua volta. Na verdade, o Concílio de Constantinopla não fala de reencarnação propriamente.
A Teologia sustenta que as opiniões defendidas pelos reencarnacionistas não têm fundamento nem comprovação histórica nos documentos conciliares da Igreja e, muito menos, na Bíblia, ainda que nela alguns textos possam ser usados para justificar a reencarnação, quando lidos de forma fundamentalista, tais como: Mt 11,12-15;16,13-17;17,10-13; Mc 6,14-15; Lc 9,7-9. Os textos contrários e testemunhas da fé na ressurreição são: Ez 7,1-14; Is 26,19; Sl 49,16; Dn 12, 2; 2Mc 7,22-29; Lc 23,39-43; Jo 1,21; Hb 9,27; 1Cor 2,9; 6,14; Rm 8,11; At 3,13 etc. A Bíblia não defende a reencarnação, mas a ressurreição.
Voltemos à pergunta dos apóstolos. Para Jesus, o modo de proceder de Elias como profeta estava com João Batista, quando anunciou a sua vinda. A morte de João Batista prefigurou a morte Dele e nada mais.
Há quem defenda que o fato de João Batista ter morrido degolado (Mt 14,10) é causa e efeito da ação de Elias, reencarnado em João Batista, visto que ele mandou matar 450 profetas de Baal (1Rs 18,40), no monte Carmelo. Trata-se de um processo purificatório.
Com todo respeito aos que acreditam na reencarnação, mas ela não coaduna com a ressurreição. Contrário à ressurreição de Jesus, que é um dado de fé associado ao Jesus histórico, não há provas para a reencarnação, ainda que possamos estar de acordo com o fato de que o espírito dos que morreram continua presente em nós por toda a trajetória de nossas vidas terrenas. Se na reencarnação, o ser humano é o responsável pela sua salvação após processos purificatórios de encarnação, a ressurreição, a imortalidade em Deus é fruto de Sua ação misericordiosa que salva o ser humano por meio da morte redentora de Jesus, não havendo necessidade de processos de purificação em outras vidas.
Quando a morte chega, morre a totalidade da pessoa, seu corpo e sua alma. No entanto, nesse momento, Deus, doador da vida e vencedor da morte, ressuscita ambos em um corpo glorioso e na individualidade de cada ser, sua alma. Com a ressurreição, o tempo deixa de existir, chega o momento da Eternidade em Deus, da imortalidade plena. Isso é ressurreição!
[1] FARIA, Jacir de Freitas. Profetas e profetisas na Bíblia: história e teologia profética na denúncia, solução, esperança, perdão e nova aliança. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 24.
[2] FARIA, Jacir de Freitas. O medo do Inferno e arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades negras de Nossa Senhora da Boa Morte. Petrópolis: Vozes, 2019, p. 212.